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Mal Dita Função Materna

Há quem duvide da cura pela fala.

Mais que falar os humanos não param de dizer, sai pelas pontas dos dedos, dizia Freud.


Dizendo transmitimos na objetividade e na subjetividade, ao infinito e além. Tretas e confusões. O dito e o silenciado, o escutado e o não. Falta modos de escapar à palavra, são a liteira dos sentidos, ficam do peito pro pensamento, causando pelos caminhos que fazem.


Dizer nos coloca no mundo, marca lugares, posições e perspectivas possíveis a partir do percurso de falante, dizendo muito mais sobre quem fala do que sobre o que ou quem é falado. Lembrando aqui, rapidinho, da inexistência de uma verdade absoluta, não importa quão resoluta seja.


Que tanto é esse que se tem a dizer? No geral, nada novo, (re)produzimos os discursos correntes a partir das nossas identificações com eles, nos juntamos para afirmar uns aos outros, também identificados a este ou aquele posicionamento, mas, das contradições e paradoxos que produzimos com tudo isso, pouco se diz, pouco se inaugura.


Tradição e traição são momentos distintos do percurso, importantíssimo inaugurar novidades, mas para isso é preciso mover as coisas de lugar e sim, perder para ganhar.


Mas é o que “mães”?

Dizem que é uma só, mas nem sempre, nem em todo lugar. Sabemos que de cultura para cultura, pode ser que mais de uma pessoa atenda pelo vocativo mais repetido do mundo no meu mundo.


Atente, “só tem umA”, essa vogal marcadora de gênero, refere-se a quem combinamos, enquanto cultura patriarcal, dizer menina ou mulher. Babado aqui também, caem muros e levantam-se cidades do dia para a noite tamanhas trans formações. O que uma menina ou uma mulher são ou estão sendo, nem te digo, outra reforma inteira se desenrolando à olhos nus.


Mãe, pelo recolhido do discurso vigente, seria aquelA cujo corpo sustenta gestar, parir e se responsabilizar por absolutamente todos os cuidados necessários à manutenção E desenvolvimento deste que chega nas condições de um bebê.


De antes de existir até a referida maior idade, contando aí, um mínimo de dezoito anos de compromisso institucional com toda a sociedade, essa umA será Aquela, única responsabilizada por todo o processo.


Curiosamente, o discurso corrente e normativo sobre nossa tema de domingo das mães, não exaure o que se pode recolher da realidade observável pelos olhos e pelos ouvidos - testemunhos de nossos registros em tantas camadas - a respeito da reprodução da vida humana e sua manutenção, ou seja, do compromisso com as próximas gerações.


Corrijam se estiver errada, há pessoas gestando que não respondem pela identidade do que a cultura chama mulheres, há gestantes que não maternam, há homens que não pariram mas amamentam ou maternam (não creio nas bruxas, mas que existem, existem!), há mulheres que maternam e jamais vão parir, entre outras variações infinitas de combinados, através dos quais “segue a humanidade”.


Mal dita função materna uma vez que o discurso sobre ela está, definitivamente, des alinhado com a prática, carecendo de urgente atualização.


A ordem do dia das mães é rever conceitos. Maternidade, maternagem, mãe. Para além da minha ou da sua vivência dos lugares materno filiais, pensar conceitos nossos.


é o que “mães”?

Pergunto pelo que, não quem, porque ao deparar com a quantidade de atribuições que recaem sobre quem leva esse nome, sei que não pode ser endereçado a uma só pessoa. Todos sabemos, e ainda assim, seguimos como se não. Recalque que chama?


Vovô Freud e outros já disseram sobre “issos” nas palavras deles, por que repetir nas minhas?

Justamente por serem outras! Compondo aí com a ideia que repete, mas nunca igual, e por isso faz todo sentido continuar elaborando e dizendo daquilo que ocupa largo espaço de vida nossa.


Maternidade, maternagem, cuidados reprodutivos são chão por onde caminha a humanidade, dorme e toma café da manhã.


Hoje exaltada, num sacrifício que é puro gozo, sem prazer. Esse deve ser o regalo daquela que, com sorte, quis abrir as pernas para a semente entrar, e pode abri-las para uma pessoa ainda no vir a ser, sair. Melhor dos cenários e ainda privilégio de poucas pessoas.


Maternidade é quando alguém tem um filho e cuida dele, disseram. Quem ainda não passou acredita, sem saber, que já sabe de tudo que precisa. Não funciona bem assim. O baixo do buraco é tão fundo que ‘cabou-se o mundo’, via de regra o dela, da cuidadora maternante, talvez o de mais uma ou duas mulheres que se puserem a chegar junto.


Assistir um ser humano em desenvolvimento é assunto de todos os outros humanos, em graus distintos de responsabilidade, pois todos o terão em sua convivência. Imagine algo dessa dimensão sendo delegado a uma única pessoa, com suas possibilidades e limitações objetivas e subjetivas. 


Imagine ser a principal ou única responsável pelo desenvolvimento de uma pessoa, da gestação à vida adulta. 


Mas ela não quis ser mãe? 


Aviso: há uma reforma curricular da função em andamento sobre o que é de tarefa exclusiva e inalienável da dita mãe e aquilo que recai sobre ela por ser melhor para todos assim. Menos pra ela. 


Pois bem, nesse lugar da arte de dizer com as letras das palavras catadas amiúde para caber naquilo que não junta força só no falar, é que vamos nos (re)havendo das demandas que não forem da função. Propondo, quem sabe, até na letra da lei, outro papel para quem tem essa (mal)dita função.


elis/angela

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