saber fazer do estudo
- Elis Barbosa
- 10 de set. de 2024
- 6 min de leitura

O antes e o depois se trançam tão apertadinhos que já nem sei que vem primeiro. Parece um vento que traz consigo anunciações silenciosas, mas que tem o poder de fazer vibrar as fibras de todo meu ser.
Sabendo só depois, posso dizer que o Grupo de Estudos – Corpos Gravídicos à Função Materna nasce no tempo exato que restava para meus filhos deixarem a primeira infância e caminharem para o desejo de adolescer. Foi tudo muito rápido! Nunca tinha tido bebê, depois tive, e agora não tenho mais. Vivo sem? Nem! Mas invés de gente nova, inventei coisa nova para fazer com gentes que já estão feitas por aqui.
Juntar quem queira trocar sobre esse que tem sido meu mote de estudo e pesquisa, além de sustentação para continuar apostando na ética do desejo em lugares além desse. Tem tanta coisa importante pra gente transformar em si a partir desses saberes. Me transforma, me transtorna, me transborda, até os dias de hoje. Por tanto, compartilho.
Abri o guarda-chuvas da maternidade e caiu na minha cabeça, lá de cima, a brincadeira mais séria que já vivi, criar gente fazendo advir e dar sustentação para seu processo de singularização diante da cultura, sujeitos. Por aqui elaboro minha própria experiência do lugar de filha, de mãe, enquanto herdeira de uma linhagem de outras que se acharam mulheres e a quem chamaram desobedientes, mesmo quando ninguém via.
Maternidade virou lugar de trabalho e de trabalhar.
Por maternidade quero falar de maternidades, mas não só porque a experiência de maternar alguém é para quem dá e recebe, e estes estão para além da dupla mãe-criança, de modo que quando falo de maternidades, também trato de parentalidades, penso e repenso modelos de famílias, de justiça reprodutiva, me deparo com modos e costumes que a cultura faz valer sobre os sujeitos, de sustentação de mal-estar sujeito/parentalidade/ cultura, de como podemos nos dar conta do que fizeram conosco para nos implicar no que faremos nós com isso, também em relação às próximas gerações. É missão de todo mundo. Todo mundo mesmo, de uma forma ou de outra.
O Manifesto Antimaternalista foi o segundo livro sobre o qual baseamos nossos estudos e investigações, o primeiro, Mal estar na Maternidade, é também de Vera Iaconelli, uma das mais escutada e lida psicanalistas do momento tratando dos temas que nos interessam, e suas derivações. Ambos os livros articulam teorias contemporâneas, nascidas de estudo, pesquisa e observação e registro do mundo de hoje e de ontens nos campos de saberes da psicanálise, da antropologia, do discurso médico. Tanto a partir da margem, com Lélia Gonzalez, ou seja, teorias forjadas por pensadores de origem dissidente, cujo espaço não é equanimemente compartilhado com teorias clássicas como as de Freud. Teorias marcadas por lugar social e tempo histórico, que oferecem pontos de firmeza suficiente pra gente sacudi-las com o pensamento crítico o quanto puder.
Tem tudo nesses dois livros? Tem tudo em algum lugar? Aquiesço com todo seu conteúdo, ordenamentos e priorizações? Pro sim ou pro não, pecar é não comparecer para o diálogo, e deixar passar a deixa para dar continuidade aos esforços investidos até aqui, e construirmos o que a ética de cada um permite.
Manifesto Antimaternalista formaliza um percurso no sentido de trazer, a partir das teorias e construções na psicanálise, “o que temos até agora”, e as perguntas possíveis de serem formuladas justamente com a base lançada. Percurso que vem desde quando maternalista reinava sem dar espaço para o anti. Sinto como um espaço cavado na unha e que mostra a antiguidade da luta, trazem notícias oficiais e recorrentes, de onde se pode partir para pensar criticamente uma série de questões caras à psicanálise e à quem se interessa pelas pessoas que vivem o ciclo gravídico puerperal com todos os desdobramentos (ou não), assim como seus efeitos.
Dividido em quatro eixos Maternalismo, Reprodução dos Corpos, Reprodução dos Sujeitos, Conclusões, o livro faz aquele caminho de localização histórica, articulação de saberes e reflexões sobre “mulheres”, sexualidade das mulheres, instinto materno, Freud falando do feminino, outros e outras falando do feminino e suas implicações sobre a experiência da maternidade, sobre a experiência da paternidade, sobre parentesco, sobre essas nomenclaturas, sobre nomeações.
Considerando que a sociedade ocidental, colonizadora, eurocentrada, organiza (basicamente) o mundo a partir de diferenças fenotípicas do corpo anatômico, cor da pele e sexo, nesse primeiro trecho “Maternalismo”, é possível localizar o maternalismo enquanto pacto das instâncias organizadoras dessa sociedade patriarcal, racista e misógina. Atendendo então, e ainda hoje, à criação e sustentação da estrutura que reserva a quem se ocupa do trabalho reprodutivo, ou seja, dos trabalhos de cuidado, manutenção e reprodução da vida, lugares de subalternidade, naturalizando instintos que, em sujeitos da cultura, não podem existir. Maternalismo é a parte onde a autora questiona e aponta para o que a psicanálise tem produzido sobre maternidade, o que tem deixado de fora e porque motivos.
Desse trecho vem apontamento histórico e conceitual do termo maternalismo e suas derivações necessárias (maternidade e mulher, basicamente), explorando nos discursos que mais nos competem, ou seja, filosófico, político, ideológico, religioso, médico, científico e psicanalítico, o que temos de desdobramentos do maternalismo para hoje, o que já sabemos sobre a construção e sustentação do discurso hegemônico sobre maternidade, assim como seus efeitos desaguando em algo como “deus, pátria, família e liberdade”.
A autora registra furos importantes no que diz respeito ao modelo de família nuclear, composta de papai homem heterossexual, mamãe mulher heterossexual, ambos via de regra representados como pessoas brancas e de classe média, ser o modelo ideal para o desenvolvimento “bio”psicossocial de um bebê humano.
Torna acessível toda uma ruma de assimetrias teóricas em relação ao que dados de pesquisa e investigação institucional trazem, ao que se pode verificar da realidade de grande parte da população brasileira. Há paradoxos e impossibilidades que aparecem e deslocam tudo para outro lugar. Cada um pensando o seu e de seus semelhantes.
Perguntas importantes: “como cuidar das novas gerações sem apelar para política anacrônicas?”, “se o prazer feminino está ao alcance do toque, sem a necessidade de penetração vaginal, como domesticá-lo para o coito reprodutivo sexual?”, “haveria alguma diferença entre o cuidado de quem gesta e pare o os demais? (...) implicaria vantagem, desvantagem ou se revelaria indiferente?”, o que é o lugar desejante junto à criança?
Reprodução dos Corpos vai trazer, como num decalque, o corpo pensando pela teoria psicanalítica, o corpo erotizado e tudo que isso envolve. Tudo que isso envolve é justamente o que está em jogo para que seja instaurado o inconsciente e constituído o sujeito, com todos os (d)efeitos que isso traz pra organização da estrutura psíquica do sujeito. “A corpereidade se funda na relação inextricável entre os três registros que constituem o psiquismo.” A ordem da trinca que aparece no Manifesto é simbólico, imaginário e real. O ciclo gravídico puerperal, de longe, parece o mais perto do real que alguém(s) pode chegar, querendo ou não. O volume lá é altíssimo, tipo do útero, saca o som do útero? (joga na rede pra ouvir)
“Esse corpo a corpo é imprescindível e vai marcar a experiência de prazer e desprazer em cada um de nós de forma única, como uma digital.”
Perguntas importantes: “Quem diz afinal, que o embrião é um bebê ou um candidato ao aborto?”, O que na cena do parto produz sofrimento?
Depois, Reprodução de Sujeitos trata de parentalidade, subjetividade e o engendramento dos sujeitos que apostam naquele que virão a ser (sujeitos) nessa trama que é a assunção do parentesco. Nas Conclusões uma pergunta: O que leva alguém a ter filhos?
Pensamos coisas importantes, produzimos saberes que cabem dentro e fora, que servem para o um a um de cada dupla, e de cada participante consigo mesmo. Mas, como não podia ser diferente, devolvo a pergunta pra você: o que acha que leva alguém a ter filhos?
O que te leva a estar aqui, pensando sobre isso?
Continuamos nossos estudos, pesquisas e fabulações sobre maternidade com um livro que comento mais logo no detalhe, em outra publicação. Vamos seguir de “As Abandonadoras – Histórias sobre maternidade, criação e culpa”.
Tem desejo, e não é só meu ou grupo não haveria, tem também das pessoas que dão sustentação à continuidade dos nossos estudos, trabalho de parceria. Tanto que havemos de continuar dizendo que além de saberes a gente frui de um tempo/espaço que rega as subjetividades e vitaliza sensibilidades e produz escuta, deslizamentos e um, entre outros lugares, para viver os efeitos disso.
Quiser entrar pro grupo, só vem. Manda mensagem.
Abraço,
elis/angela